IMPORTÂNCIA DO INQUÉRITO POLICIAL COMO INSTRUMENTO DE DEFESA DO ACUSADO

As discussões que circundam o inquérito policial são frequentemente marcadas por uma superficialidade proposital e manchadas por interesses corporativistas, com desiderato de diminuir o valor desse indispensável mecanismo persecutório.

Não raras vezes, parcela da doutrina e jurisprudência aborda o tema com simplificações incompatíveis com a importância da investigação policial. Ignora o fato de a grande maioria dos processos penais, locus onde é sacramentada a responsabilidade penal ou não do sujeito, ser calcada exatamente no inquérito policial. Em geral, o processo penal segue a sorte da investigação policial, de modo que resultado da etapa inicial acaba por determinar o deslinde de toda a persecução penal.

Pois bem, costuma-se inserir dentre as características do inquérito policial (que compõem o próprio conceito dessa investigação policial) a informatividade. Parte da doutrina repete, sem maiores reflexões e por vezes com certa dose de menosprezo, que o inquérito policial é um procedimento “meramente informativo”.

Com essa frase reducionista é passada a errada mensagem de que o valor probatório do inquérito policial é insignificante e apenas relativo, e que esse instrumento investigativo não produz provas (mas unicamente elementos informativos). Transmite-se o equivocado recado de que não é preciso maior atenção à fase investigativa, pois nada do que ali é colhido pode amparar eventual condenação, e ocasionais vícios não contaminarão a ação penal.

Com efeito, é a obrigatoriedade ou facultatividade de a defesa ter ciência e se manifestar com relação ao dado angariado que confere a ele o status de prova ou de elemento informativo, e não o fato de ter sido produzido na etapa policial ou processual. Em outras palavras, nada impede que o conhecimento alcançado na fase policial seja considerado tecnicamente prova e sirva como base exclusiva da condenação.

Sabe-se que o fato de o inquérito policial ser inquisitivo não significa que o contraditório e a ampla defesa sejam completamente afastados da fase pré-processual. Esses princípios incidem na investigação policial, muito embora de forma mitigada. Pode, sim, haver participação da defesa, não de forma contemporânea, mas após a conclusão das diligências e sua juntada nos autos do inquérito policial (artigo 7º do Estatuto da OAB e Súmula Vinculante 14 do STF). Essa atuação defensiva meramente facultativa realmente não tem o condão de conferir valor probatório ao elemento colhido, que será informativo e não poderá amparar com exclusividade uma condenação (deverá ser conjugado com alguma prova). O que não significa que o elemento informativo seja inútil: pode tranquilamente subsidiar a decretação de medidas cautelares e o recebimento da denúncia (ex: declaração da vítima, depoimento da testemunha e interrogatório do suspeito).

Provas cautelares são as que devem ser colhidas de imediato em razão do risco de desaparecimento do objeto da prova em virtude do decurso do tempo, exigindo, em regra, autorização judicial (ex: interceptação telefônica, dados de e-mails e busca e apreensão domiciliar) ou podendo ser requisitada diretamente pelo delegado de polícia (ex: ação controlada no crime organizado e dados pretéritos de ERBs). Já as provas não repetíveis (irrepetíveis) são as que devem ser produzidas rapidamente sob pena de desaparecimento, destruição ou perecimento da fonte da prova, não dependendo, regra geral, de ordem judicial (ex: perícia de lesões corporais ou conjunção carnal sobre a vítima, de eficiência de arma de fogo, de falsificação de documento e de constatação de droga), ou precisando de chancela do juiz (ex: perícia de RX sobre o suspeito).

Dizer que o elemento colhido na investigação é informativo, e somente com a ciência e manifestação da defesa durante o processo passa a ser probatório, consiste em mero jogo de palavras, não mudando o fato de a prova ter sido colhida no bojo do inquérito policial. A prova cautelar ou irrepetível não é produzida na fase judicial, mas na etapa investigativa. É a polícia judiciária que adota a técnica investigativa, providenciando análise da coisa ou pessoa e extraindo a informação. Fica para o Judiciário apenas a tarefa de abrir o necessário espaço para a manifestação da defesa. Mas a colheita da prova ocorreu no inquérito policial, sob presidência do delegado de polícia.

A própria doutrina reconhece que “o contraditório sobre a prova, também conhecido como contraditório diferido ou postergado, traduz-se no reconhecimento da atuação do contraditório após a formação da prova”. É dizer, nesse caso, o contraditório e a ampla defesa são elementos extrínsecos à produção da prova, incidindo quando a prova já foi formada. Funcionam como uma chancela de legitimidade, ao possibilitar que a defesa conteste eventuais equívocos na colheita da prova concebida pela polícia judiciária. Ademais, a defesa não necessariamente atacará o modo de produção da prova, podendo se limitar a pedir a aplicação da menor pena possível ao acusado. A prova em si é a colheita da informação, a captura dos dados, com respeito às eventuais exigências de autorização judicial (cláusula de reserva de jurisdição), de forma (ex: lavratura de auto circunstanciado na busca e apreensão domiciliar, desgravação da conversa telefônica, confecção de laudo de perícia ad hoc por dois peritos nomeados) e de método (ex: inexigibilidade de autoincriminação etc).

Embora seja recorrente na doutrina a expressão de que não se produz prova no inquérito policial, tal expressão apresenta-se falaciosa, uma vez que a quase totalidade dos elementos probatórios carreados às ações penais são identificados ou produzidos no curso da investigação criminal na fase pré-processual, ou seja, no curso do inquérito.

Ou seja, as tão conhecidas “operações policiais”, em sua grade maioria, não são nada além do que uma fase de um inquérito policial, destinada à arrecadação de provas e indícios de autoria e materialidade de infrações penais. (…) É perceptível por mera observação empírica, a qualquer operador na seara do Direito Penal, que o inquérito policial é o mais importante instrumento de colheita de provas de infrações penais.

Com efeito, a obtenção da informação pelo delegado de polícia na primeira etapa da persecução penal não é ontologicamente melhor ou pior do que aquela feita pelo juiz na segunda fase da persecutio criminis. A diferença reside tão só na desnecessidade de a polícia judiciária comunicar previamente a defesa sobre a diligência policial (de maneira a preservar o elemento surpresa imprescindível para a eficácia da investigação) e na facultatividade de participação da defesa no inquérito policial. Essa peculiaridade nada tem a ver com a garantia de direitos do imputado e com o caráter democrático da persecução penal, que permanecem incólumes desde essa etapa policial até a fase processual. O objetivo é somente, respeitando as garantias constitucionais, dotar o inquérito policial de um mínimo de efetividade, para que o Estado-investigação possa se reerguer face à situação de desnível provocada pelo próprio criminoso. Afinal, fossem os atos investigatórios precedidos de aviso anterior ao investigado, seria praticamente inviável a localização de fontes de prova e a produção do material probatório.

Nesse panorama, fácil entender porque é o inquérito policial o responsável por fornecer o lastro probatório suficiente não unicamente para o recebimento da denúncia (justa causa), mas também para a própria condenação (prova para além da dúvida razoável).

Vale ressaltar também que persistir com a reducionista afirmação de que o inquérito policial traduz peça meramente informativa incentiva profissionais incautos a não se preocuparem com a atuação na fase policial, pois supostamente não teria qualquer relevância para o desfecho do processo penal. E assim agindo a defesa, quando abrir os olhos no adiantar da persecução penal, com as provas devidamente produzidas, pode ser tarde demais para a adoção de qualquer estratégia defensiva minimamente eficaz.

Não se pode esquecer que, com base nos atos do inquérito, se pode retirar a liberdade (prisões cautelares) e os bens de uma pessoa (medida assecuratórias), ou seja, com base nessa peça “meramente informativa” (como foi rotulada ao longo de décadas), podemos retirar o “eu” e “minhas circunstâncias” (Ortega y Gasset)…

Logo, é totalmente equivocada a afirmação de que o “inquérito policial produz apenas elementos informativos” ou que o “inquérito policial é mera peça informativa”. Nada obsta que a polícia judiciária produza provas no curso da investigação, o que significa dizer que o inquérito policial possui valor probatório e deve ser olhado com atenção pelos atores jurídicos da persecução penal, especialmente a defesa.

A partir da ciência do investigado em relação aos atos investigativos (limitada temporalmente à finalização das diligências), pode o suspeito se manifestar de forma ampla, requerendo diligências (artigo 14 do CPP) e contraprova (artigo 306, §2º do CTB), e apresentando razões e quesitos (artigo 7º, XXI do Estatuto da OAB).

Vale dizer, o contraditório incide de forma regrada quanto ao direito de informação (condicionado à conclusão das diligências policiais). Já sua outra faceta, a possibilidade de reação, que se confunde com a própria ampla defesa, não sofre maiores limitações. Isso porque o investigado pode se manifestar pessoalmente no interrogatório (autodefesa positiva ou negativa) bem como por intermédio do seu defensor (defesa técnica). No entanto, mesmo não havendo barreira à defesa na fase policial, deve-se reconhecer que ainda é mais exógena (fora do inquérito policial, por habeas corpus ou mandado de segurança impetrados perante o juiz) do que endógena (dentro do inquérito policial, por requerimentos ao delegado de polícia), praxe que deve mudar paulatinamente.

Interessante observar que as Cortes Superiores são contraditórias ao tratar desse assunto. Se de um lado aduzem genericamente que não se aplica o contraditório e a ampla defesa ao inquérito policial, de outro lado o STF edita a súmula vinculante 14 e o STJ assenta que “apesar da natureza inquisitorial do inquérito policial, não se pode perder de vista que o suspeito (…) possui direitos fundamentais que devem ser observados mesmo no curso da investigação, entre os quais o direito ao silêncio e o de ser assistido por advogado”.

Fica claro que o debate reside mais numa questão terminológica do que propriamente substancial ou de conteúdo. Cuida-se de objeção mais de amplitude da atuação defensiva do que de sua existência.

Obviamente não se defende a aplicação irrestrita da audiência bilateral (audiatur et altera pars). A Polícia Judiciária não é obrigada a notificar o investigado a cada ato praticado e abrir prazo para manifestação, como deve fazer o Judiciário no processo, sob pena de se jogar por água abaixo o indispensável elemento surpresa da investigação policial.

Entretanto, nada impede (ao contrário, é recomendável) a adoção de uma série de providências garantistas que não subvertam a inquisitoriedade do inquérito policial, tais como a notificação do indiciado por meio de nota de culpa (legalmente obrigatória apenas no flagrante — artigo 306, §2º do CPP), franqueando-lhe a oportunidade de se manifestar no inquérito policial e eventualmente mudar o entendimento do delegado de polícia, bem como a formulação de reperguntas pelo advogado na parte final da oitiva (legalmente possível após o advento da Lei 13.245/16).

É consentâneo com uma persecução penal democrática que, desde a fase inicial, o sujeito passivo da investigação preliminar tenha a possibilidade de expor suas razões e influir sobre o convencimento do delegado de polícia, tendo em vista que bens jurídicos da envergadura da liberdade estão em jogo.

“A contrariedade da investigação consiste num direito fundamental do imputado, direito esse que por ser um elemento decisivo no processo penal não pode ser transformado em nenhuma hipótese, em mero requisito formal”.

Isso significa que, antes de se indiciar ou denunciar alguém, é fundamental que tal pessoa não somente tome conhecimento da investigação que sobre si recai, mas também que possa eventualmente apresentar elementos que demonstrem sua inocência ou a própria inexistência do crime. Somente em casos excepcionais é que se deve prosseguir com a imputação sem lhe oportunizar o exercício do contraditório e da ampla defesa, por exemplo, no caso de estar o investigado foragido.

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