Os abusos porventura ocorridos no exercício indevido da manifestação do pensamento são passíveis de exame e apreciação do Poder Judiciário com as consequentes responsabilidades civil e penal de seus autores.
Com esse entendimento, a juíza Leila Hassem da Ponte, da 25ª Vara Cível de São Paulo, condenou uma imobiliária e o proprietário de um flat a indenizar por danos morais uma mulher transexual que teve o contrato de locação cancelado um dia após se instalar no imóvel. A reparação foi fixada em R$ 10 mil.
A autora da ação alegou que o cancelamento do contrato de locação antes mesmo da formalização da assinatura foi motivado por preconceito em relação a sua identidade de gênero. Para a juíza, ficou de fato comprovada a “conduta reprovável” do proprietário do flat, que “violou a honra e a imagem da autora“.
Áudios de WhatsApp anexados aos autos embasaram a decisão da magistrada. Há conversas entre o corretor da imobiliária e o proprietário do flat em que eles tratam da identidade de gênero da locatária. Segundo a juíza, os áudios violam o disposto no artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal, que trata do direito à imagem e sua proteção.
“É incontroverso que o contrato deixou de ser assinado devido à condição de pessoa transexual da autora, conforme se denota da irresignação do corréu ao afirmar que já tinha esclarecido que ‘não queria que o flat fosse alugado para um travesti’. Ademais, o corréu generaliza a pessoa da autora, moldando seu caráter por fatos ocasionados por outras pessoas que anteriormente haviam locado o flat, conforme se pode observar na frase: ‘já tivemos problemas com travestis antes'”, disse.
Leila afirmou que o Supremo Tribunal Federal vem se manifestando sobre condutas homofóbicas e transfóbicas no âmbito criminal e inclusive enquadrou as mesmas em espécies de crimes de racismo, “acentuando ainda mais a relevância do tema perante o Poder Judiciário, para que tais atos deixem de estar presentes na sociedade brasileira”.
Assim, ela concluiu ser devida a indenização por danos morais, uma vez que “a necessidade da autora de se retirar do flat não se tratou de mero dissabor, pois ofendeu a sua honra, destacando o fato que tudo se deu em razão da sua orientação sexual, ato discriminatório que ofende o princípio da dignidade da pessoa humana”.
No entanto, a juíza negou os pedidos de indenização por danos materiais, correspondente ao valor gasto com hospedagem provisória em hotel, além da multa de R$ 5 mil por rescisão antecipada do contrato. Isso porque, segundo Leila, o contrato não chegou a ser assinado, ou seja, não houve negócio jurídico entre as partes.
“E, uma vez, inexistindo negócio jurídico, não há obrigação da parte ré de pagar à parte autora o valor da rescisão contratual – já que não houve contrato – estipulada em suas cláusulas”, disse. Além disso, a magistrada afirmou que “não pode a autora pedir a restituição do valor que gastou durante o período de estadia no hotel, já que a desistência do contrato de locação ocorreu em fase pré-negocial”.